sábado, 6 de outubro de 2007

Tem gente que não começa o dia sem tomar café da manhã.
Tem quem não levante da cama antes de se espreguiçar beeeeem devagar.
Tem ainda aqueles que jamais ousam colocar o pé esquerdo no chão antes de "começar o dia com o pé direito".

Pra ela, o dia não começava sem que ela estralasse a canela direita. E já fazia isso com uma destreza incrível: era só levantar o dedão do pé e tensionar de leve a panturrilha. Aí era só esperar o CLEC! e pronto: o dia havia começado.

Naquele dia a canela não estralou. Não havia jeito: levantava o dedão, tensioniava a panturrilha, girava o quadril de um lado pro outro, esticava a perna. Nada. Ficou quase dez minutos esperando pelo CLEC! Com medo de perder o ônibus, desistiu da canela e levantou assim mesmo. Mas sabia (ela sempre sabia) que aquele dia não seria igual aos outros. Sem o estralo da canela, tudo seria diferente.
Durante todo o trajeto do ônibus tentou discretamente estralar o maldito músculo, mas o dedão não levantava direito dentro da bota. Esticou discretamente a perna embaixo do banco da frente...nada.
Àquela altura, o mau humor já tinha ultrapassado a hora-limite e havia se estendido pro resto do dia, ela sabia.

Trabalhou o dia inteiro encucada com a canela. Talvez ela nunca mais conseguisse estralar aquele lugarzinho tão bom, que tinha o poder de fazê-la começar o dia com mais ânimo. Aí então ela teria que achar alguma outra parte pra estralar. Já havia perdido a habilidade de estralar o pescoço, o punho esquerdo, o ombro direito e os dois joelhos. Começou a ensaiar a estralação na canela esquerda. Mas a perna esquerda era tão descoordenada que ela tinha que pensar com muita concentração apenas pra saber "onde tá o dedão esquerdo mesmo?" Não ia dar certo.

Foi um daqueles dias úmidos e cinzas. Quando enfim estava chegando em casa, desolada, ainda foi surpreendida por uma dessas chuvas-que-vêm-do-nada. Teve que correr. Chegou no elevador ofegante, tapando com a bolsa a transparência da camisa branca molhada.
Agradeceu a gentileza do vizinho (sim, aquele charmosééérrimo!) de tê-la esperado com a porta do elevador aberta. Assim que entraram "ó, tudo bom?" , "oi, tudo!". Ele virou pro espelho, arrumou os cabelos e... estralou o pescoço! Ela lembrou da canela e, na última tentativa do dia, espichou a perna pro lado dele. Como uma sinfonia o "CLEC!" veio, como uma bomba de serotonina.

Ele sorriu pra ela. Ela sorriu de volta.
Enfim, o dia havia começado.