Até os onze anos, mais ou menos, eu costumava passar as férias de julho na minha fazenda. Ficava uma, duas semanas solta por lá, convivendo com cachorros, patos, galinhas, porcos, ovelhas, cavalos, bois e vacas. Acordava cedo -mas só às vezes- pra "ajudar" o Tio "Freita" (o tio que trabalha lá até hoje) a tirar leite da vaca.
Depois, tomava café com pão de casa, bolo de milho, manteiga feita em casa e ia brincar.
Daí, me metia no meio dos matos de eucalipto com uma mochila cheia de comida e água, pegava um pedaço de bambu pra fazer de cajado (meu pai me ensinou a me defender dos perigos do mato assim), e fingia que tava numa expedição interminável...ficava andando por horas, em companhia do melhor cachorro que eu tive (o Saddam - uma mistura de pastor com labrador) e, algumas vezes, da minha irmã do meio, que na época devia ter uns 5 anos. Meu sonho era me perder de verdade por lá, e achar o caminho de volta sozinha...mas eu conhecia aquilo como a palma da minha mão.
Eu alimentava as galinhas, colhia ovos, atolava os pés nos cocôs das vacas, passeava na beira do açude a cavalo (minha égua se chamava Liberdade...) enfim...Mas o grande evento, capaz de reunir toda a família (tios, avós, primos e agregados) era a marcação e a castração do gado.
Normalmente fazíamos num sábado e, enquanto o churrasco era assado - nessas valas feitas no chão mesmo- a gente assistia ao espetáculo dos pampas. Eu, como sempre fui metida, era extremamente atuante: tocava o gado pro brete, maquiavélica e corajosamente, como se fosse uma espécie de líder nazista ou um general qualquer da ditadura. E enquanto todos recebiam a marca feita a ferro quente pelas mãos do meu pai, os touros iam sendo castrados e transformavam-se em meros boizinhos. E o que "sobrava" na mão do castrador, era minuciosamente assado e servia como aperitivo pro churrasco. Uma carne peculiarmente deliciosa, devo admitir. (sim, pra quem não entendeu, nós comíamos as bolas do touro mesmo).
Eu acompanhava o abate de porcos, ovelhas e galinhas e achava tudo muito interessante. Talvez por isso eu não seja tão fresca hoje, embora tenha medo de lagartixa e rãs (essas meio transparentes).
Alguns anos depois, aprendi a dirigir o trator e andava faceira com meus primos no reboque.
Presenciei nascimento de terneiros, fui bicada por quero-queros furiosos, pisei em cobras e em urtigas, cravei felpas nas mãos, ralei joelhos e me salvei de inúmeras picadas de marimbondos pq. o meu pai se deitou por cima de mim, caí de um cavalo xucro e desmaiei (mas voltei a andar a cavalo no outro dia mesmo).Na páscoa, meus pais escondiam os ovos nas árvores do pátio e a gente acordava cedo pra procurar tudo, de pijama e pantufa. Hoje eles ainda fazem isso com a Luísa.
***
Nesse feriado, eu andei em volta do mesmo açude, mas dessa vez, foi pra recolher o lixo que as pessoas insistem em jogar, apesar da cerca que existe ali.
Muito triste...enchemos dois sacos com garrafas pet, sacolas, chinelos, carteiras de cigarro, vidros e etc.
Hoje o pasto virou plantação de soja e não tem mais boi. Nem porco, nem cavalo e nem o Saddam. Minha vó não tá mais aqui pra fazer pão de casa em forma de bonequinhas. Eu não piso mais nos cocôs de vaca só pra transgredir as "regras" e me falta coragem pra enfrentar o mato de eucaliptos. Nunca mais dirigi o trator também.
Mas é assim mesmo. Eu fico feliz por ter conseguido aproveitar a minha infância naquele lugar tão especial, que me abstraía da atmosfera da "cidade grande".
Fico feliz por ter ouvido do meu pai: "não seja cagona, guria!", inúmeras vezes, quando eu dizia que tinha medo de atravessar o campo por causa dos bois brabos, por exemplo...frase que na hora me deixava com raiva, mas que hoje ecoa na minha cabeça toda vez que eu penso "tenho medo disso".
A infância vai embora e leva detalhes preciosos.
Eu tento resgatar esse sentimento inconsequente de onipotência e coragem cada vez que volto na fazenda, mas essa aproximação vertiginosa do mundo adulto age como um repressor e me trava, diante de tudo.
Só espero que a minha irmã pequena descubra toda essa magia da fazenda, antes que seja tarde demais.
Impressionante como a gente fica vulnerável quando cresce.
Um comentário:
Mágui, eu também tive, ali pelos 9, 10 anos, uma experiância no rancho. Minha irmã mais velha comprou um sítio, que era na verdade só um terrenão em uma zona rural, e construiu ali uma casinha, plantaram milho, criaram galinhas, coelhos, tentaram criar abelhas (eles compraram um livro do tipo "como criar abelhas"), etc... tudo sob a MINHA supervisão, heheh. Pena que durou bem pouco aquele período, pois logo minha irmã teve bebê e eles tiveram que pôr a venda o sítio. Mas por causa disso achei delicioso teu texto, que, mais uma vez, fiquei espantado de tão bem escrito que ficou.
Grande beijo, guria!
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