terça-feira, 14 de agosto de 2007

Sobre as cotas

depois de um mês, conforme combinado, deixo aqui o resultado da enquete que eu propus, sobre as cotas. pode ser que isso não diga nada pra muita gente, mas independente de qualquer coisa, deixo abaixo a minha versão sobre tudo isso.






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o que eu mais tenho escutado nos últimos meses em relação a tudo isso que tá acontecendo no país é "pelo menos".mas não é um "pelo menos" como os outros. esse vem carregado de uma falsa sensação de (des)compromisso, um sentimento que beira a comodidade, a negligência. cruza com a hipocrisia.

pessoas são assaltadas, sequestradas, têm suas coisas materiais e morais roubadas. mas "pelo menos" estão vivas.

descobrem um escândalo por dia em brasília. mas "pelo menos" estão investigando.

esses "pelo menos" estão tornando as pessoas mais covardes, mais resignadas, descrentes. está acontecendo um cultivo geral de um tipo de desonestidade que atrapalha qualquer visão que queremos ter da sociedade. é a desonestidade com a gente mesmo. é fingir que tá tudo bem, quando tudo está desmoronando.

ser honesto é saber lidar com a realidade como ela é.

essa é a melhor definição que eu já ouvi.

muito bem. existe uma realidade que dorme e acorda com a gente, todos os dias. mas é preciso que a gente também acorde todas as manhãs junto com a realidade.

eu fiz questão de escrever sobre as cotas por inúmeros motivos. mas principalmente porque todas as vezes que tentei discutir sobre isso com pessoas que pensam diferente de mim, ouvi exatamente o mesmo discurso, as mesmas frases.

primeiro, me acusaram ora de racista, ora de burguesa, pra que eu perdesse o fio da meada. comecei a me dar conta de que eu estava quase pedindo desculpas por não ter tanta melanina assim, ou por ter estudado em colégio particular desde o jardim. o jogo de inversões é tamanho, que é preciso muita coragem pra dizer isso em público. o pior é que o público normalmente estudou no mesmo colégio que tu, e tem as mesmas condições financeiras.

eu não vou me justificar, dizendo que eu não sou racista nem burguesa, porque eu já não me abalo mais com essas facadas de baixo-nível. meus conceitos de racismo e burguesia vão além de tudo isso.

na maioria das vezes, parece que surge um efeito coletivo de alívio, um efeito placebo, um monte de "pelo menos" quando se fala nas cotas. na verdade, problema nenhum está sendo resolvido com isso. todo mundo sabe. mas é muito mais social e politicamente correto se dizer a favor, do que arriscar ofensas pejorativas e PRECONCEITUOSAS, se dizendo contra.


a população brasileira tem uma enorme dificuldade em se reconhecer como sociedade e conviver com a realidade. desde sempre, todo mundo é acostumado com governos paternalistas, sem importar a legenda do partido. se elege aquele que conquista a maioria dos mais pobres e promete mais coisas. sempre foi assim. um péssimo hábito que, como todos os hábitos, vai ser muito difícil de abandonar.

essa desonestidade tá tão encravada no povo que fica quase impossível falar sobre o assunto. e, só pra encurtar a história, eu vou me preocupar em falar sobre as cotas para alunos de escolas públicas, porque falar de raça no brasil e determinar fenótipos é quase tão subjetivo quanto dar opinião sobre um filme ou um livro.

"as cotas são uma medida provisória e imediata."

teoricamente, até podem ser. com tantos anos de medidas imediatas no brasil, poderíamos ter investido numa mudança de verdade, no caso da educação, investindo em escolas de ensino fundamental, por exemplo. o bolsa-família é pra ser uma medida imediata, pra minimizar a fome. mas, o que acontece na realidade? as famílias têm mais filhos, lógico! assim, garantem mais dinheiro. quem vai recriminar essa atitude? sabem que tem o governo pra ajudar, ué! sendo assim, as medidas imediatas, vão transformando a sociedade e gerando um círculo vicioso de inter-dependência entre povo e governo.

"ah, mas pelo menos tem o bolsa-família e o sistema de cotas...."

mais uma pra coleção dos "pelo menos". essa justificativa é extremamente rasa, é como dizer que "pelo menos não tem vulcão nem terremoto no brasil", apesar de tudo estar um caos. é quase uma ironia.

"precisamos dar uma chance aos pobres e aos negros, pra que eles possam estudar."

não se resolve um problema histórico de um jeito tão superficial como esse. repito: o que me revolta, não é a tentativa de instituir a igualdade, mas sim, o jeito que isso é feito. A sociedade é desigual, sim, e sempre foi. Mas só tem um jeito de tentar minimizar isso, o que vai levar vááários anos e o sistema de cotas só vem pra segregar e deixar a sociedade cada vez mais segmentada.

mesmo com o sistema de cotas, os pobres vão continuar pobres e os negros beneficiados pelas cotas vão continuar negros e pobres. mas, mais uma vez, o governo foge das suas obrigações e devolve o problema pro povo, que continua se matando por qualquer tipo de oportunidade.

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O que me enoja nas pessoas que se dizem a favor, é o ar de petulância e prepotência e superioridade que respiram. O "ser do povo" e toda a conotação intelectual que vem junto. O mesmo ar de petulância e prepotência que Hitler respirava. Exatamente o mesmo.

Nomes pomposos, titulação, um breve currículo que dá respaldo a toda aquela opinião que vem logo em seguida. Como se a gente precisasse de "moral" acadêmica e científica pra soprar a neblina da hipocrisia que cega os mais ortodoxos, apontando a realidade que acorda com a gente e que parece passar longe dos olhos dos pró-cotas.

O que me enoja também é que, a maioria dessa gente, discute e defende tudo isso com o nariz empinado, pregando a igualdade entre as classes, na beira da piscina tomando whisky, do alto da sua cobertura na zona nobre da cidade, de dentro do seu carro importado ou sentada no salário gordo que o governo paga.

Querem começar com a igualdade? Discutam sobre o vestibular. Acabem com essa farsa, essa forma eliminatória e injusta de ingresso nas universidades! Assim, ninguém vai precisar das cotas.

Pra que haja igualdade, tem que mexer no bolso. O pior racismo, o racismo velado, é esse encoberto pelos títulos dessa classe elitizada de professores universitários, diretores, reitores, ministros, que preferem consentir com um absurdo desses do que baixar o padrão de vida. E o pior de tudo, é que o povo aceite isso como um grande favor, fortalecendo a grande filosofia brasileira, da "lei da vantagem".



Mariana Batista Lima, fonoaudióloga clínica de pobres, negros, índios e brancos, atualmente inserida em escolas infantis, promovendo a saúde, a educação e prevenindo o preconceito e os problemas de comunicação.

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