sexta-feira, 3 de outubro de 2008

aprender a falar.

o que fazer quando a mãe do paciente começa a frase dizendo: "preciso te contar uma coisa que eu nunca falei pra ninguém aqui da clínica." aí ela joga uma bomba em cima da tua mesa, chora e se desespera dizendo que há 6 anos é espancada pelo ex-marido na frente das crianças.

aí ela levanta a perna da calça, a manga da blusa e mostra aquelas marcas que me causaram náusea. eu não queria ter que saber dessas coisas. mas o lugar onde eu trabalho não me permite escolher. ela me escolheu. poderia ter mostrado pra psicóloga, pra psicopedagoga, pra delegada da delegacia da mulher...mas foi a mim que ela escolheu.
e eu senti a responsabilidade. todos aqueles podres que ela vomitava através de choro, raiva e palavras arrastadas de tanto pavor, pesavam toneladas na minha consciência. era um pedido de socorro.

claro que eu orientei ela a prestar queixa na delegacia da mulher, mesmo que ela esteja sendo ameaçada pelo covarde. falei que tem leis que protegem ela nesse caso, que todo mundo vai ficar do lado dela e que o primeiro passo quem tem que dar é ela e aí sim, as outras pessoas vão poder ajudar. mas eu sabia que aquele blablabla havia sido simplista demais. ela ouve isso de um monte de gente, toda hora. precisava ouvir mais.

acabei aprofundando a dica e reforçando várias outras coisas, falei das crianças, do quanto isso tá prejudicando elas também, falei que ela haia sido muito forte e corajosa por ter começado a enfrentar tudo isso de frente, no momento que resolveu me contar. a conversa levou quase uma hora. ela parou de chorar e aos poucos foi se encorajando. na saída, me deu um abraço demorado e deixou escapar um "obrigada" por entre os dentes. eu sou muito emotiva, mas dessa vez, engoli o choro e sorri tímida junto com ela.

pra muita gente esse episódio não vai terminar além de um comentário idiota do tipo "ah, apanha há 6 anos?! então é porque ela gosta." eu ouvi isso quando contei essa história. essas pessoas normalmente são aquelas que não têm coragem de vomitar os próprios problemas como essa mulher fez. são covardes, porque jamais teriam essa atitude.

suspendi o atendimento de fono do guri. enquanto ele sofrer tamanha violência, vai precisar de alguém que, primeiro, ajude ele a engolir e digerir essa realidade. depois, vai aprender a falar. que nem a mãe dele.

Um comentário:

Anônimo disse...

Comovente a história e lindo o texto.

Acho muito legal essa confiança que as pessoas (principalmente humildes) depositam em vocês. Minha área é completamente diferente, mas eu invejo essa capacidade de enfrentar situações extremamente tristes e ainda manter a seriedade e servir de apoio para as pessoas.

Parabéns, Mari. No teu lugar eu estaria orgulhoso do que tu faz.


Bah, e o comentário que tu citastes no penúltimo parágrafo é deprimente.