Em janeiro de 1983, eu era um lindo bebê de 8 meses, careca, sorridente e estava sendo paparicada por toda minha família, já que eu fui a primeira neta dos meus avós maternos.
Era calor, minha mãe e eu havíamos passado uma agradável tarde à beira da piscina na casa da minha vó. Existe uma foto daquele dia, eu naquele clássico carrinho azul-marinho com mãos e pés de bisnaguinha esticados, e aquele bocão que me acompanha até hoje.
Chegamos em casa e eu ganhei um danoninho. Ao final, com a boca ainda suja, fiquei brincando com a colherinha, daquelas de inox. Eu não sei por que motivo minha mãe me deixou brincar com uma colher, mas deixou.
Minutos depois, o acidente aconteceu: enfiei a colher boca adentro, cortando todo o palato mole (a parte bem do fundo do céu da boca, onde não tem osso) e separando a úvula (campainha) em duas partes.
Minha mãe, apavorada, ligou para o meu pediatra e assim, fui levada ao hospital. Ninguém sabia direito a gravidade do problema, só quando o pediatra falou pra minha mãe trazer umas roupinhas, pois eu ficaria internada para uma cirurgia, a ficha caiu. Desespero total na família.
Eu era um bebê de 8 meses e seria submetida a uma delicada cirurgia plástica para reconstruir toda a parte posterior da minha boca. Meus pais não tinham plano de saúde. Haviam acabado de comprar um carro. O gol foi vendido às pressas, pois meus pais queriam o melhor cirurgião do Rio Grande do Sul.
Então, ele apareceu. O doutor Roberto Chem tinha 38 anos. Restava aos meus pais, confiar cegamente naquele doutor tão afetuoso e de sorriso fácil (e que, por coincidência, havia sido professor da minha mãe no Mauá, cursinho pré-vestibular).
Minha mãe fez ele prometer que eu não ficaria fanha. Ele prometeu. Mais do que isso: desafiou meus pais a colocar o nome dele na capa da Zero Hora caso algo desse errado. Cumpriu a tarefa com maestria. Fiquei uns dois dias sem poder beber água. Meu pai também, junto comigo. Não achava justo eu passar sede sozinha. Fiquei com cicarizes, minha boca foi rasgada nos dois cantos, mas a cirurgia havia terminado com sucesso.
Alguns anos depois, a minha campainha reconstruída, virou o meu grande orgulho. Nunca hesitei em mostrar, pra qualquer um, a minha PANCAINHA TOLTA.
***
Quando escolhi fazer fonoaudiologia, eu não tinha idéia do quanto aquela cirurgia havia sido determinante. Um dia, em uma aula pertinente, contei meu caso. A professora, maravilhada, tentava explicar pra turma que a cirurgia, junto com toda a adaptação funcional que eu havia feito sem saber, tinha preservado coisas fundamentais para a minha profissão. Eu realmente corri um sério risco de ficar fanha ou ter problemas para engolir a comida.
Lembrei do Dr. Chem. Por uma sutileza do destino, aquele homem havia me permitido escolher a profissão que eu tenho hoje. Quando em formei, mandei um convite pra ele com uma cartinha, resgatando esse fato e agradecendo a dedicação que ele teve comigo.
Ele poderia ter feito aquela cirurgia de qualquer jeito, eu era só um bebê, podia apenas garantir que eu pudesse me alimentar. Mas não. Hoje eu sei o quanto ele foi preciso, minucioso, perfeito.
Ele me respondeu com uma outra carta, escrita à mão, emocionado, dizendo que a minha manifestação havia sido o maior reconhecimento que ele havia tido até hoje. Se disse orgulhoso, me parabenizou e mandou o arranjo de flores mais lindo que eu recebi quando me formei.
Infelizmente nunca mais o reencontrei, mas sempre tive muito carinho e gratidão por ele.
Hoje, por volta das 10 da manhã, meu pai me ligou:
-Filha, tu sabe quem era um dos passageiros do voo da Air France? Dr. Roberto Chem. Quis te dizer antes, pra tu não ficar sabendo pela tv.
Engoli seco. Os olhos se encheram de lágrimas. A tristeza parou bem ali na minha garganta perfeitamente remendada.
Eu não tive a oportunidade de reencontrar o médico mais importante da minha vida.
Mas ele me deixou as melhores cicatrizes, que eu vou carregar pra sempre.
Vou continuar tendo o maior orgulho de mostrar a minha campainha torta pra quem quiser ver.
Muito obrigada, Dr. Roberto Chem.
6 comentários:
eu achava que tu conhecia ele.
:(
conheci, mas eu era muito jovem. tão jovem que eu não lembro.
Nossa, Mariana! Eu já estava arrasada com a história da colher e quando achei que tudo tinha saído bem, chega na parte em que o doutor estava no avião... que triste! :-(
Bonita homenagem...
[]'s
PUTZ, té choreiê.
Já tava megaemocionada na cartinha escrita à mão.
A goela das crianças nunca mais vai ser a mesma.
:(
Caramba, fico impressionada como alguem consegue escrever com tanta sutileza, emoção e bom humor. Tive surtos de quase choro e riso, o texto é tão empolgante, que me senti lendo uma novela em capitulos, com direito e trilha sonoro de drama, comedia e suspense.
Menina, vc com certeza deve ser uma excelente fonoaudióloga, mas de alguma forma está se perdendo como escritora.
Essa parte foi hour concur:
"Engoli seco. Os olhos se encheram de lágrimas. A tristeza parou bem ali na minha garganta perfeitamente remendada."
Desculpe, até ignorar a singela e merecida homenagem ao médico, mas precisava enviar esta mensagem a você, que me trás sempre algo de bom quando entro no seu blog, seja de reflexão, risos ou mesmo entretenimento.
Obrigada! E não é trote nem nada, é apenas resultado de um "trabalho" inusitado que você presta neste blog. Fruto de uma personalidade marcante e pura com uma modernidade impressionante.
E chega de rasgar seda. E não, não sou lésbica! rs
Bjs linda!
Giovanna - Manaus/Amazonas
Nossa, Giovanna...não sabia que o meu blog ia tão longe! :)
Muito obrigada pelo carinho e pelos elogios. De certa forma, é esse tipo de retorno que me faz continuar escrevendo!
Um grande beijo!
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